esta mulher que caminha em mundos paralelos
entre indiferença e rotina
sente vontade de juntar na alma pedaços antigos
palavras
que saem da memória
tomam forma no papel

sua carne sua sede sua coragem
sua face afiada

da pele à flor

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Monólogo de uma mendiga no cais

Eu, que viajei pelo mundo/e nos portos imundos/não pude me demorar/
diante do espelho/vejo meu rosto/meu corpo/ e pergunto,quem eu sou?
Eu, que dos homens conheci sofreguidão e desejo/ o despir sempre a
máscara,a roupa/ sem me realizar./Eu, que trago cicatrizes no útero, nos seios/ do que ficou desses amores sem vida./Eu, que centena de vezes abri a boca,pernas e braços/para acolher aqueles que em mim vieram buscar/ o prazer de um instante/ deixando em meu corpo/sêmen, tristeza, gemidos e agonia./
Eu, que encostei meu rosto em travesseiros baratos/ porque ficar
só era muito pior,/era possuir a tentação da morte/ a rondar minha
falta de rumo./Eu, que adormeço para esquecer/ o dia de ontem/ que
não quero saber da véspera/ amanhã é tudo de novo/ outro dia, quem
sabe.../ Eu, que por medo da solidão/ saí à procura de um momento/
e me atirei em qualquer abraço/ e deixei trancado à chave teu
retrato/ memória ontem:/primeiro beijo/ primeiro homem/ primeiro
sonho de menina/ que do amor só conheceu as letras/ nunca o signifi-
cado./Eu, que virei as noites/ batendo de porta em porta/ à procura
de um sentimento/ de um prato de sopa/ de um cheiro de pão na madru-
gada amarga./ Eu, que da fome conheço um pouco/ porque o medo maior
sempre foi ficar/ perdida/ ou morrer sem amor/ numa esquina sem nome./ Eu, que para não sofrer tudo isso/ralei meus dedos nos muros/
abri meus pulsos/cortei as veias/ e vi jorrar nas poças da calçada/
meu sangue-vida/ meu sangue herdado/ do amor cigano por sua amada./
Eu, que não lembro nomes nem datas/ porque lembrar é sofrer de novo/
e da maternidade conheci/ o ventre inchado/ e depois o sono fingido da morte/ éter/ anestesia./ Eu, que um dia rezei dentro de uma igreja qualquer/ e pedi a Deus que me desse conforto/ porque não
acredito na paz/ e sentada no banco duro/ senti a presença da luz/ ouvi o canto da Ave-Maria/ até não poder mais,/ e em seguida voltei
às ruas/ segui meu rumo vagabundo/ o bar./ Lá, onde o álcool aquece
bocas/ amortece sentimentos/ e deixa na alma a sensação/ de agora
sou outra/ uma nova mulher./Eu, que ainda tenho esperança/ de um dia
me aposentar/ dos vícios e das ruas/ mas que já nem sei mais quem sou/ e por isso escrevo cartas a mim mesma/e quando termino/ rasgo
tudo o que sobrou de mim/ porque reler seria sentir novamente/ o
que vomitei no papel./ Eu, que não sei mais a diferença/ entre alegre e triste/ e quando começa a noite/ nem sei que terminou o
dia/ o mês/ o ano./ Vivo e sobrevivo/ o tempo já não conta./ Eu,
que em meus delírios/ vejo um amontoado de rostos/ milhares de bocas
a me sugar/ a me chupar/ a arrancar de meus seios/ o prazer efêmero do instante/ e depois me afastar/ me empurrar para o lado./ Então,
saio correndo/ rondo a noite/ louco prazer/ vago instante./
Esqueço tudo num trago/ de cigarro vagabundo/de uma birita qualquer/
tudo que possa amortecer a queda/ e me fazer esquecer quem sou./Eu,
que agora só conheço a dor/ já nem quero mais chorar/ porque chorar seria o mesmo que ter pena de mim/ enfraquecer/ e não poder mais
continuar/ porque chorar seria lamentar/ o que de mim eu fiz/ seria pedir perdão/ ter que me modificar/ ou começar de outra maneira/
recomeçar por onde não sei/ ou nunca tentei ousar./ E, então eu me dou conta/ que já nem me lembros do começo/ o que me arrastou/ e
qual a corrente que ainda me segura./ Sei apenas que estou solta
no ar/ esperando a queda final/ esperando o último impacto/ numa
pedra qualquer./ Um gesto qua vai nascer sem eu querer/ um grito/
um espasmo no corpo/ gemido de morte./ E todos esses sons martelam
em minha cabeça/ feito moto-contínuo./ Não consigo mais parar/ nem que o pensamento se acalme/ ou minha mão pare de escrever./ E,cada
palavra que jorra/é a única forma de me perpetuar nestes papéis em
branco/ lençóis macios para minha pena./ E, quando vejo a vida escorrer/ fora de meu alcance/ penso o que seria mudar de rumo/ soprar o vento/ e seguir por outra estrada qualquer./ Nesta ciranda
indiferente/ eu só preciso de um gesto/ de uma palavra amiga/ ou
quem sabe/ um sonho/ como os filmes de antigamente/ como as tardes
de ontem/ como os dias que não voltam mais./Tenho medo que esta vela acabe/ antes que eu termine/ tenho medo do escuro, da insônia,/
tenho medo de pensar longe/ medo de querer ser outra/ de tentar aprender a ser alguém/ e começar de novo/ uma outra vida/ sem nada
nos bolsos/ nenhuma bagagem além da vida que passou/ e que ainda trago amarrada aos meus pés/ e tenho medo, por último,/ de me sentir
livre/ de caminhar/ de correr nos campos de infância/ de voltar
para casa/ de bater a porta/ de pedir socorro/ de pedir perdão/
de gritar: Eu Existo!/ Tenho o medo terrível de tentar ser outra/
e de não saber mais como é ser outra/ e então tenho vontade,pela
primeira vez/ de não rasgar nada/ de reler/ de me ver no papel/ de ver gravados meus delírios/ e, depois, tenho medo de levar um susto/
e voltar a chorar./ Lá fora amanhece o dia/ outro dia sem nome/ em
mim, a noite continua/ e quando esgotar meu tempo/ e quando vier o sono/ e quando o papel acabar/ e quando a vela se consumir/ tudo
vai passar/ vai desaparecer/ como uma cortina mágica que se abre./
E meus olhos vão receber o sol/ e meus ouvidos,o canto dos pássaros/
e meu suor escorrerá pelo meu corpo/ e eu serei apenas uma mulher
sentada à beira do cais/ cansada/ a escrever/ a escrever/ a escrever
feito escrava/ tudo que sufoca e pesa./ Enrolo os papéis/ e lanço
ao mar,/ dentro de uma garrafa/ esta última mensagem de náufraga.

Novembro de 1995

2 comentários:

  1. Que poema, Sandra! Maravilhoso, um poema voraz, forte, de leitura ofegante, aí que se vê a beleza da poesia: juntar a métrica, a leitura, tudo dentro de um tema. Perfeito!
    Porém hoje vim em seu blog especialmente. Como já bem sabe, sou filho do Cláudio Renato, e por acaso hoje na minha escrivaninha estava seu livro "Artifício dos fogos", propositalemente meu pai deixou para que eu lêsse. Fiquei realmente impressionado, ainda que feito mais jovem (ao menos meu pai me disse) o livro é de uma maturidade absurda, e a escrita eu adorei, poemas condensados, simples, mas de temas ricos e instigantes. A maneira como brinca com a oralidade, só quem tem pretensão poética poderia fazer. E me sinto muito feliz, que mesmo que indiretamente conheça uma pessoa assim, pois muito vou em blogs e vejo grandes "díarios em versos", mas pouco vejo de poesia como arte, e você é uma artista. Portanto, me sinto agradecido de tê-la como visitante e amiga virtual, mas espero conhecer pessoalmente para conversas sobre poemas, sei que tenho muito a aprender.
    Um beijo, orgulhoso de estar aqui!

    F.M.

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