esta mulher que caminha em mundos paralelos
entre indiferença e rotina
sente vontade de juntar na alma pedaços antigos
palavras
que saem da memória
tomam forma no papel

sua carne sua sede sua coragem
sua face afiada

da pele à flor

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Doze abraços que ficam

1. Abraço: O Confidente

Toquei a campainha, e quando você abriu a porta, entrei na sala e em sua vida também. Não sei mais há quanto tempo foi, afinal o que é o tempo fora, quando temos um tempo sem relógios em nosso interior?

Entrei como uma estranha que invade um território, com cautela, observando,tentando medir forças, mas sem medo, e com uma frase escondida no bolso: "Decifra-me ou eu te devoro!".
Não, não houve antropofagias. Havia o desejo de despojar-se, de desarmar-se , ou melhor, de voltar a amar-se, de querer se ver no olhar do outro. Ver novas cores através de um prisma diferente. Levantar o tapete, retirar a poeira acumulada. Varrer cinzas da memória.

No início não quis de deitar no divã, sentei numa poltrona, e em silêncio desafiei sua paciência. Até quando eu iria resistir? Seu olhar enigmático não revelava. Não havia pressa. Afinal, foram anos de treinamento para libertar feras e em seguida amansá-las. Saber conviver com o lado obscuro, e com tudo aquilo que corrói e impede nosso caminhar.

Quem dava as cartas? O desejo, o pulsar, a vida? Ou o medo do desconhecido, a morte sem vida antes, o nada? Você me sacudia, e eu me debatia. Era um duelo de palavras. A raiva, o choro, as lágrimas escorriam pelo chão e me carregavam, cada vez mais, para perto de você.

Mergulhei de cabeça nas almofadas de seu sofá, abandonei meus medos, revelei segredos e fui criando laços.Tecia todos os dias, ponto por ponto, o
manto de Penélope. Mas à noite eu não destecia, pelo contrário, as descobertas e as revelações me deslumbravam e me faziam falar mais no
dia seguinte, compondo um mosaico de emoções.
E foi com esta palavra que eu presenteei as paredes de sua sala, e libertei
essa nova mulher.

E quando chegou a hora de partir eu lhe pedi um abraço. Queria levar
comigo uma lembrança, um calor amigo, uma emoção repartida, um
momento que eu pudesse lembrar que, houve um tempo, um longo tempo que você dedicou a me trazer de volta à vida.

Hoje, sabendo de sua perda, de sua dor, mesmo distante, abraço você com meu carinho, dedico meu tempo de saudade e essas palavras de gratidão.
Obrigada.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Retrospectiva

Neste fim de ano quando fazemos retrospectivas: os melhores do ano, melhor filme, melhor atuação, o melhor dos melhores, por que
não fazer uma retrospectiva do que a vida nos deu de presente, ou
em tempo, do que fizemos com o tempo que a vida nos deu?

O que ficou daquela infância com gosto de pitanga e terra molhada,
das pipas que voaram de nossas mãos levando esperanças e sonhos
para um céu sem fim. Das tardes lentas, quando a chuva não parava, e era gostoso comer pão quentinho à beira do fogão a lenha. Em que parte de mim ficou tudo isso escondido,para que hoje eu saia a pescar no fundo do aquário da memória? Para onde fui depois daquela adolescência ora triste ora alegre, quando as roupas não não cabiam em meu corpo de menina, ora criança ora mulher ?

E esse sentimento louco de primeiro amor, primeiro beijo, primeiras
descobertas de um sexo ainda tabu? Sobreviveu? Ou a vida foi
apagando, diluindo, não precisando, esquecendo até se tornar
lembrança no papel.

Neste andar para trás, não quero lembrar perdas, mortes nem
partidas sem despedidas, os fim de caso, o amor transformado
em rotina. Não, nada disso vai me fazer sofrer de novo. É passado,
e quando não é bom, a gente esquece. Ou finge que esquece.
Não se pensa, não se relembra. Era, não é mais.

Quero lembrar das coisas boas que chegaram de surpresa, sem que
pudesse imaginar, ou das quais lutei muito para obter. Quero lembrar de como costurei meu tempo, entre as pessoas que amei, cuidei e me entreguei com verdadeiro amor ou amizade.
Foram muitas tardes e noites, foi quando aprendi a exercer a paciência, gota a gota, num exercício de crescimento. O que deu impulso ao meu continuar.

De tudo que recebi, o presente maior foi a vida - e depois
o de criar a vida: meu filho.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Monólogo de uma mendiga no cais

Eu, que viajei pelo mundo/e nos portos imundos/não pude me demorar/
diante do espelho/vejo meu rosto/meu corpo/ e pergunto,quem eu sou?
Eu, que dos homens conheci sofreguidão e desejo/ o despir sempre a
máscara,a roupa/ sem me realizar./Eu, que trago cicatrizes no útero, nos seios/ do que ficou desses amores sem vida./Eu, que centena de vezes abri a boca,pernas e braços/para acolher aqueles que em mim vieram buscar/ o prazer de um instante/ deixando em meu corpo/sêmen, tristeza, gemidos e agonia./
Eu, que encostei meu rosto em travesseiros baratos/ porque ficar
só era muito pior,/era possuir a tentação da morte/ a rondar minha
falta de rumo./Eu, que adormeço para esquecer/ o dia de ontem/ que
não quero saber da véspera/ amanhã é tudo de novo/ outro dia, quem
sabe.../ Eu, que por medo da solidão/ saí à procura de um momento/
e me atirei em qualquer abraço/ e deixei trancado à chave teu
retrato/ memória ontem:/primeiro beijo/ primeiro homem/ primeiro
sonho de menina/ que do amor só conheceu as letras/ nunca o signifi-
cado./Eu, que virei as noites/ batendo de porta em porta/ à procura
de um sentimento/ de um prato de sopa/ de um cheiro de pão na madru-
gada amarga./ Eu, que da fome conheço um pouco/ porque o medo maior
sempre foi ficar/ perdida/ ou morrer sem amor/ numa esquina sem nome./ Eu, que para não sofrer tudo isso/ralei meus dedos nos muros/
abri meus pulsos/cortei as veias/ e vi jorrar nas poças da calçada/
meu sangue-vida/ meu sangue herdado/ do amor cigano por sua amada./
Eu, que não lembro nomes nem datas/ porque lembrar é sofrer de novo/
e da maternidade conheci/ o ventre inchado/ e depois o sono fingido da morte/ éter/ anestesia./ Eu, que um dia rezei dentro de uma igreja qualquer/ e pedi a Deus que me desse conforto/ porque não
acredito na paz/ e sentada no banco duro/ senti a presença da luz/ ouvi o canto da Ave-Maria/ até não poder mais,/ e em seguida voltei
às ruas/ segui meu rumo vagabundo/ o bar./ Lá, onde o álcool aquece
bocas/ amortece sentimentos/ e deixa na alma a sensação/ de agora
sou outra/ uma nova mulher./Eu, que ainda tenho esperança/ de um dia
me aposentar/ dos vícios e das ruas/ mas que já nem sei mais quem sou/ e por isso escrevo cartas a mim mesma/e quando termino/ rasgo
tudo o que sobrou de mim/ porque reler seria sentir novamente/ o
que vomitei no papel./ Eu, que não sei mais a diferença/ entre alegre e triste/ e quando começa a noite/ nem sei que terminou o
dia/ o mês/ o ano./ Vivo e sobrevivo/ o tempo já não conta./ Eu,
que em meus delírios/ vejo um amontoado de rostos/ milhares de bocas
a me sugar/ a me chupar/ a arrancar de meus seios/ o prazer efêmero do instante/ e depois me afastar/ me empurrar para o lado./ Então,
saio correndo/ rondo a noite/ louco prazer/ vago instante./
Esqueço tudo num trago/ de cigarro vagabundo/de uma birita qualquer/
tudo que possa amortecer a queda/ e me fazer esquecer quem sou./Eu,
que agora só conheço a dor/ já nem quero mais chorar/ porque chorar seria o mesmo que ter pena de mim/ enfraquecer/ e não poder mais
continuar/ porque chorar seria lamentar/ o que de mim eu fiz/ seria pedir perdão/ ter que me modificar/ ou começar de outra maneira/
recomeçar por onde não sei/ ou nunca tentei ousar./ E, então eu me dou conta/ que já nem me lembros do começo/ o que me arrastou/ e
qual a corrente que ainda me segura./ Sei apenas que estou solta
no ar/ esperando a queda final/ esperando o último impacto/ numa
pedra qualquer./ Um gesto qua vai nascer sem eu querer/ um grito/
um espasmo no corpo/ gemido de morte./ E todos esses sons martelam
em minha cabeça/ feito moto-contínuo./ Não consigo mais parar/ nem que o pensamento se acalme/ ou minha mão pare de escrever./ E,cada
palavra que jorra/é a única forma de me perpetuar nestes papéis em
branco/ lençóis macios para minha pena./ E, quando vejo a vida escorrer/ fora de meu alcance/ penso o que seria mudar de rumo/ soprar o vento/ e seguir por outra estrada qualquer./ Nesta ciranda
indiferente/ eu só preciso de um gesto/ de uma palavra amiga/ ou
quem sabe/ um sonho/ como os filmes de antigamente/ como as tardes
de ontem/ como os dias que não voltam mais./Tenho medo que esta vela acabe/ antes que eu termine/ tenho medo do escuro, da insônia,/
tenho medo de pensar longe/ medo de querer ser outra/ de tentar aprender a ser alguém/ e começar de novo/ uma outra vida/ sem nada
nos bolsos/ nenhuma bagagem além da vida que passou/ e que ainda trago amarrada aos meus pés/ e tenho medo, por último,/ de me sentir
livre/ de caminhar/ de correr nos campos de infância/ de voltar
para casa/ de bater a porta/ de pedir socorro/ de pedir perdão/
de gritar: Eu Existo!/ Tenho o medo terrível de tentar ser outra/
e de não saber mais como é ser outra/ e então tenho vontade,pela
primeira vez/ de não rasgar nada/ de reler/ de me ver no papel/ de ver gravados meus delírios/ e, depois, tenho medo de levar um susto/
e voltar a chorar./ Lá fora amanhece o dia/ outro dia sem nome/ em
mim, a noite continua/ e quando esgotar meu tempo/ e quando vier o sono/ e quando o papel acabar/ e quando a vela se consumir/ tudo
vai passar/ vai desaparecer/ como uma cortina mágica que se abre./
E meus olhos vão receber o sol/ e meus ouvidos,o canto dos pássaros/
e meu suor escorrerá pelo meu corpo/ e eu serei apenas uma mulher
sentada à beira do cais/ cansada/ a escrever/ a escrever/ a escrever
feito escrava/ tudo que sufoca e pesa./ Enrolo os papéis/ e lanço
ao mar,/ dentro de uma garrafa/ esta última mensagem de náufraga.

Novembro de 1995

sábado, 14 de novembro de 2009

Palavras ao vento

Eu que exauri o sentido da lógica, lapidei formas intransitivas,
agora vejo-me confinada em silêncio consentido.

Mas neste momento quero falar, falar como se fosse a primeira vez,
ousar com a boca o que vem do coração, sem as censuras de mim mesma
atropelando emoções, lógica, pensamento.

Libertar meu espírito, ser poeta sem fronteiras, dar em palavras
o peso da vida, o som da morte adiada, as cores do renascer.

Recomeçar como se fosse manhã, acordar para uma nova vida,
esquecer quem fui ontem e ser intensamente.

Quero me entregar ao mundo dizendo simplesmente:
Esta mulher sou eu, minha face afiada.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Palavra viajante

vai palavra
sai de mim
e segue seu destino de mulher

água doce
corre
no leito do rio
toca
as margens,o limite,o profundo
vence
o desafio das curvas
sem saber o que vem depois
continua
navegando obstáculos da sintaxe
ora correnteza
ora calmaria
pule
as pedras do caminho
e se alimente do limo
- macia esperança -

desague
enérgica cachoeira
que ao tocar a terra
amolece os corações

seu ponto de chegada

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Amor aos pedaços

arranco palavras
uma a uma
fio por fio
e no destecer contínuo
jogo tudo no chão:
frases

pontos e vírgulas
deste amor aos pedaços
que não posso remendar


piso nas lembranças
sangro meus pés
rasgo tudo que do amor
foi papel:
cartas
poemas e retratos


sento na soleira da porta
e começo a chorar

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Cinco Sentidos

O reencontro foi acidental, numa rua qualquer, numa hora sem nome, num dia que poderia ser qualquer um, nada disso era importante, o que valeu mesmo foi aquele instante, em que mesmo de longe eu vi seu corpo caminhando em minha direção, como tantas outras mil vezes ele havia feito. Só que agora, não eram alguns passos que nos separavam, eram vinte e cinco anos, quase bodas de prata de separação.


Naquele instante eu via não só o homem que um dia foi muito amado por mim, mas o tempo que havia passado sobre nós, as marcas, as mudanças, e eram tantas, que de minha parte mesmo que eu quisesse contar, mil e uma noites não bastariam.


Ele foi se aproximando, sem pressa, em seguida um sorriso de alegria e boas vindas. Segurou minhas mãos, e havia naquele toque o mesmo calor de antigamente, como se ele ainda mativesse a mesma temperatura de outrora. Depois, me abraçou longamente, descontando uma saudade
antiga que, a medida que ele apertava minhas costas, ia se desprendendo de nós e trazia alívio pelo amor contrariado um dia.


Quando me soltou, falou emocionado, primeiro como se fosse um segredo, bem perto de meu ouvido: "quanto tempo, quanta saudade..."e começou a fazer as perguntas comuns que fazemos a quem perdemos de vista. Sua voz mantinha o mesmo timbre rouco, emocionado e tão querido.



Mesmo que tivesse sido breve, o nosso abraço, em minha memória voltou aquele perfume de colônia inglesa; ele continuava fiel a Yardley, sempre conservador, sempre elegante, sempre ele mesmo. A vida não tinha maltratado seu compasso.


Na despedida, uma leve ousadia, um roçar de lábios, um selinho, como a garotada costuma dizer, e de novo senti aquele hálito de pipoca em sua boca, aquele gosto de passado, de beijinhos roubados na sessão de cinema, aos sábados.


Da mesma forma que surgiu, desapareceu dobrando uma esquina qualquer da vida, daquela vida que um dia eu disse não, mas ficou gravado em todos meus cinco sentidos um tempo que foi alegre, e eu tão jovem.


Faz parte da bagagem.